50 minutos de sono, cinco vezes por dia!

Essa e outras astúcias de AMYR KLINK para dar voltas ao mundo em navegação solitária (e voltar vivo para contar a história).

Publicado por administrator

17 de agosto de 2018

50 minutos de sono, cinco vezes por dia!

Essa e outras astúcias de AMYR KLINK para dar voltas ao mundo
em navegação solitária (e voltar vivo para contar a história). 

 

por Otávio Rodrigues

 

A história de Amyr Klink é conhecida e bem registrada, todo brasileiro sabe ou deveria saber. Apaixonado por barcos e relatos de grandes navegações, aos dez anos adquire sua primeira canoa – e aí não para mais. Em 1978, aos 23 anos, sobe numa moto e vai até o Chile. Cinco anos mais tarde, atravessa o Atlântico Sul num barco a remo que ele mesmo construiu, façanha consagrada no best-seller Cem Dias Entre o Céu e o Mar. Então começa a construir o veleiro Paratii, a bordo do qual, em 1989, realiza sua primeira viagem solitária à Antártica, um estirão de 642 dias, com o capricho de sete meses e meio imobilizado entre as massas de gelo – que resulta em outro livro de sucesso, Paratii, Entre Dois Polos. Ao todo, são 15 viagens à Antártica, duas circunavegações polares – uma delas sozinho no Paratii, a outra com tripulação no Paratii II, um dos mais avançados veleiros já construídos. Casado, pai de três filhas, um dos fundadores do Museu do Mar (São Francisco do Sul, SC), vive entre São Paulo, Parati e aeroportos nacionais e internacionais, cumprindo uma chamativa agenda de palestras e exposições, afora o contínuo trabalho de campo: “Gosto de visitar estaleiros de todos os tipos, desde os sofisticados até esses mambembes aí, onde há condições precárias, mas muita sabedoria naval”.

Nesta breve conversa, em que o inspiramos a tratar de aspectos do sono, ele acabou falando um pouco de tudo, com detalhes emocionantes de suas corajosas jornadas.

 

Você desenvolveu uma ciência do sono?

Bem, o barquinho a remo era uma experiência simples nesse aspecto, porque você para de remar e vai dormir, como se estivesse em casa. O sono não foi um problema. Eu li a viagem do Slocum sobre a primeira circunavegação solitária em um veleiro, entre 1895 e 1898, e a coisa mais impressionante era como ele fazia para controlar o barco enquanto dormia. Então fui percebendo que existe uma dieta de sono.

 

Ela tinha uma fórmula?

Joshua Slocum era um brilhante navegador e tinha uma habilidade tamanha, que ele conseguia regular os panos para que o barco ficasse numa rota estável. Barco nunca quer ficar no rumo quando você larga – é que nem helicóptero, uma máquina que não quer voar. O barco, normalmente, acaba desviando. A gente hoje usa um recurso chamado leme de vento ou piloto automático, que mantém o barco num curso, ou em relação ao norte magnético ou em relação ao ângulo do vento, o que permite dormir. O problema é que nos barcos rápidos o máximo que você pode dormir é 50 minutos. Você dorme trechos de 45 a 50 minutos, cinco vezes por dia.

 

E de onde vem essa conta? 

É em função do trânsito mesmo, da curvatura da Terra. Dormir duas horas seria um risco muito grande, porque em duas horas um navio vem da invisibilidade total para um ponto de colisão com seu barco. Ou em função da presença de gelo, porque em regiões de muito gelo, durante o dia nem se pode dormir, você tem que fazer correções o tempo todo na rota, e em condições de tempo ruim… E as regiões em que eu gosto de navegar são de tempo ruim permanente, não é incomum na Antártica haver tempestades com ventos de 60 a 70 nós. É difícil essa parte do sono, porque os intervalos têm de ser menores.

 

E depende do organismo de cada um, com certeza…

Eu desenvolvi minha metodologia e, depois, conversando com outros velejadores, percebi que a maioria tem uma estratégia muito semelhante: períodos de no máximo 50 minutos de sono, mas poucas vezes por dia, umas cinco vezes. Alguns chegam a dormir uma hora. Ou seja, é um ritmo extenuante. Não é tanto a parte física de trabalhar nas velas, é mais essa de administrar o sono. Dá um certo mau humor nas primeiras semanas, mas depois você acostuma, porque é, fundamentalmente, uma questão de segurança, mesmo.

           

E o barco segue sozinho?

Sim, e quando tem condições boas de mar ou favoráveis de vento, em que o barco está bastante estável, eu aproveito para já adiantar o sono – deito e faço um cochilinho de 30 minutos. E acaba virando como uma conta de poupança, que você vai enchendo e, eventualmente, se tiver algum problema, usa.  Mas eu usei poucas vezes. Duas vezes no Oceano Índico eu tive de ficar mais de 50 horas sem poder dormir. Mas é engraçado você pensar em um barco de 100 pés, com um cara dentro, e enquanto ele está dormindo esse barco é um fantasma que está indo a 10 ou 12 nós, completamente autônomo, sozinho…

 

Deve existir um sistema de alarme, certo?

Tem vários tipos de alarme. Alarme de profundidade, alarme de radar… Mas há vários tipos de problemas. Tem muito chinês no mar e eles não usam qualquer tipo de detecção ou de aviso, então é muito comum não terem sistema de AIS, que a gente usa para identificar os barcos. Tem o problema do Brasil, onde às vezes você encontra embarcações de pesca sem um único instrumento ou iluminação a 100 ou 150 milhas da costa. É perigoso. E o pessoal solta rede, também. O maior problema do litoral brasileiro é rede. Tem muita rede de espera. E são barcos inacreditáveis, minúsculos, que saem para o alto mar, litoral norte do Ceará, litoral de Santa Catarina… E a chance de colidir com um barco desses é muito grande.

 

E dá para ver as redes?

Elas ficam estendidas entre boias, eles largam lá e vão buscar um dia depois. Mas é um caso sério, porque enrosca no leme, na hélice. Tem um problema em alta latitude, na região das ilhas Falkland e Geórgia do Sul, onde pesqueiros compram licenças de pesca do governo britânico – em sua maioria são orientais, chineses – e têm os barcos duplicados. É pesca fraudulenta. E eles também usam espinhel, que é uma linha com anzóis que chega a ter quase 40 quilômetros de extensão.

 

Não deve ser difícil ser apanhado numa dessas…

Numa das viagens até a Geórgia do Sul a gente pegou um espinhel. Naquela época a gente velejava com os eixos do barco soltos. Quer dizer, com o movimento do barco, vento nas velas, eu deixo a hélice solta e ela vai virando. Há várias teorias… Tem gente que diz que isso trava, que dá uma turbulência e resulta em menos arrasto; tem quem acha mais econômico, que perde menos velocidade deixando a hélice solta.

 

E ela foi girando, girando…

Sim, e a hélice é grande, tem uma potência brutal! E a gente pegou mais ou menos a metade do espinhel, que enroscou na hélice e foi virando. Não percebemos. Vimos que tinha vento forte, todo pano, o barco estava a 12 nós e, de repente, 8 nós, 5, 4… Deve ter alguma coisa errada! Essa linha deve ter ficado algumas horas torcendo, devia ter uns seis mil anzóis. Linha de polipropileno, aquela azul clara, torcida…

 

Imagine, é uma fábrica de corda!

E ela foi torcendo e torcendo junto com os anéis e, quando a gente parou e o conjunto todo se uniu, formou um nó maior do que esta casa, uma bola gigantesca, com todos os anzóis para fora. Era uma coisa horrenda. Não tinha como ligar os motores, como acionar os lemes. Por sorte, havia uma foice dessas de cortar mato, que a gente usa na Patagônia, nas Falklands, para cortar kelp (o grande problema dos fundeios por lá é o kelp, e às vezes você puxa a âncora e vem uma bola dessa alga). Bem, ficamos dois dias ali cortando o espinhel, trabalho perigosíssimo.

 

Voltando ao sono, então não é em um barco a remo, ao contrário do que parece, que o sono cria os maiores problemas?

Não. Na viagem a remo, na verdade, era quase um alívio. Mas, hoje seria um problema. Com a experiência que tenho, e acompanho as rotas de navios, hoje os oceanos estão bem organizados, há um movimento grande de embarcações e tem rotas oceânicas onde tem trânsito como numa avenida Marginal. Na travessia em 1984 não tinha GPS, nenhum sistema de posicionamento de precisão. A única coisa que eu podia carregar para me defender era um refletor-radar, um aparelho passivo que potencializa o sinal do radar para que você seja visto. Mas na época era muito comum navios não terem radar de espécie alguma, toda a vigília era visual.

 

Chegou a passar algum sufoco?

Tinha esse problema de estar muito baixo no horizonte, então o ângulo de visada é muito restritivo – quer dizer, a seis milhas de distância você já não enxerga mais um navio. No veleiro você está um pouco mais alto, tem o mastro… Mesmo assim, não existe visibilidade. Cheguei a passar do lado de um navio, orientando, eles sabiam que eu estava próximo, porque eu estava falando via VHF, que é curta distância… Falei: “Olha, estou a 135 graus, a boreste da proa de vocês”… E eles olhavam para o mar e não me viam. Por que tem vários problemas. A arrebentação das ondas, e o barco sobe entre as ondas, tem um swell, uma ondulação grande, e tem as ondas do vento, de seis metros, então o barquinho ficava poucos segundos no topo. Marinheiros experientes – não viram! À noite tem uma vantagem, a facilidade das luzes. É mais fácil avistar embarcação à noite do que durante o dia.

 

E quanto aos grandes animais marinhos – dava para combinar o ciclo de sono com eles?

Tive um problema na travessia do Atlântico com uma jubarte que encasquetou comigo. Ela encostava no barco, vinha de lado… Ela estava brincando, tentando identificar o que poderia ser. Depois, pensei, era época de desmame das corcundas, em setembro, e quando elas vão chegando no litoral brasileiro começam a desmamar os filhotes, que nasceram provavelmente no lado africano do Atlântico Sul. E talvez ela tenha me confundido com um filhote, encostou no barco. E a sensação para mim era assustadora.

 

E os tubarões? Dizem que eles não dormem…

Eles também – não sabia dizer que tubarões eram, mas tinha sido alertado pelo francês que atravessou o Atlântico Norte remando. Ele me disse que no crepúsculo, matutino ou vespertino, é quando os tubarões se aproximam para identificar se você é comestível ou não. De fato, principalmente no lado africano, eu tive vários raspões que, no começo, foram apavorantes. Depois, tudo bem.

 

Como foi o episódio com o grupo de baleias?

Uma experiência linda de morrer, que chamei no livro de “A creche das baleias”. Foi um grupo de jubartes. Eu não vi as baleias, porque era um dia de vento forte, mar encrespeado e muito sol, então a luz reflete no branco da espuma e a gente não enxerga muito bem. E o barco já estava levinho, eu tinha perdido mais de 20 quilos, andava rápido, ia surfando as ondas, estava remando muito rápido, faltavam poucos dias… De repente vi um golfinho estranho, que não tinha bico. Percebi que era filhote de baleia. E eram vários. E aí, quando eu fui tentar fazer uma foto, fiquei em pé, vi que havia um grupo enorme de jubartes formando um círculo gigante, um círculo de proteção aos filhotes – provavelmente em relação a orcas ou tubarões.

 

Voce sonha?

Sonho bastante.

 

E sonha acordado, tem novos planos em mente?

Sim… Tenho vontade de fazer uma viagem com o Paratii, o pequeno. Eu retomei ele! Tinha vendido a um dos meus sócios e ele fez uma reforma abissal. O barco tem 30 anos, nunca esteve tão em ordem, está uma delicia. É um barco que eu gosto muito, e ele está dentro da minha escala humana. E eu queria fazer uma viagem para a Tasmânia, tenho muita vontade de voltar a navegar no Oceano Índico. É violento, é forte e é favorável. A maior ondulação que peguei na minha vida e mais constante também. É o famoso Southern Ocean, que tem vento de oeste permanente e ondulação de oeste que gera ondas monumentais, como nenhum lugar da Terra.

 

Tem algo a ver com o prazer, o quase encantamento do surf?

O surfista surfa na beira da praia, duas horas. Lá você surfa semanas a fio, dia e noite, numa residência móvel. Você está numa nave, surfando ondas de verdade, ondas de 15, 20, 25 metros. E eu não gosto de vento contra. A gente faz barcos para andar bem contra o vento, mas esse conjunto de condições favoráveis e muito fortes, situação que apavora a maioria dos navegadores, me encanta terrivelmente.

 

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